Manifesto contra a Descriminalização do Aborto

Em resposta aos atentados que se têm visto contra a dignidade humana – princípio máximo de um Estado Democrático de Direito – valho-me da prerrogativa que esta democracia me confere de intervir e protestar, manifestando reprovação incondicional aos projetos de descriminalização de práticas de aborto. Proponho-me, nesse sentido, a refutar os principais argumentos com base nos quais se defende o aborto, mostrando com a máxima clareza possível que sua descriminalização não deve ser sancionada em hipótese alguma, porque a dignidade e a vida humanas em hipótese alguma podem ser violadas. Estimo que concidadãos de todos os cantos do país ponderem com retidão e justiça sobre o assunto e façam coro à minha voz, por concordarem que, se um homem é justo, ele não só teoriza sobre questões morais sem jamais perder de vista a dignidade humana, como também não é capaz de se esquivar dela nas leis e na prática.

1) Primeiro argumento: dizem-nos que o embrião (e mesmo o feto) ainda não constitui um ser humano; e, por isso, o aborto não se constitui assassinato.

Se o embrião ou o feto não constituem um ser humano desde o início da gestação, quando é que deixam de ser mero embrião e feto e se tornam um ser humano? O fato em si do simples nascimento nada acrescenta ao conceito de “ser humano” e à dignidade da pessoa humana que ela já não tenha antes do nascimento, enquanto embrião e feto. O estatuto biológico, jurídico, filosófico (existencial) do embrião e do feto humanos são inegavelmente o estatuto de um ser humano, e de nenhuma outra coisa. Se eu fosse uma pessoa que houvesse tido problemas de formação e, por isso, não tivesse membros completos nem a possibilidade de ser mentalmente sadio, tendo apenas as funções básicas para passar toda a vida vegetando, em que isso me diferenciaria, em natureza e dignidade, de um nascituro, que não tem sua formação ainda completa? De modo algum eu seria “menos humano”. Um ser humano em gestação/formação é um ser plenamente humano. Não se trata de uma questão quantitativa (isto é, de quantos membros se possui para que se seja humano) e muito menos qualitativa (que categoria de ser humano se trata): a questão diz respeito ao tipo de existência que está em jogo: essa existência é humana, e absolutamente consumada enquanto existência. Portanto, não há rascunho de ser humano; mas seres plenamente humanos em formação.

2) Segundo argumento: dizem-nos que uma gravidez indesejada causada por violência sexual é justificativa para o aborto, pois seria psicologicamente insuportável gerar o feto, sendo que constantemente ele provocaria a dolorosa lembrança da violência sofrida. Da mesma forma, caso tivesse o filho, a mulher jamais criá-lo, mantê-lo consigo, sem que isso fosse uma tortura psicológica insuportável dia a dia. Ela não seria capaz de conviver com o filho e amá-lo. Assim, em função do trauma psicológico causado à mulher, o aborto deveria ser permitido.

Trata‐se de um argumento que reflete situação bastante complexa, mas que nem por isso é justifica válida para o aborto. Por um lado, a mulher está gravida por razão da violência de um estuprador. Por outro, se ela matar o nascituro, também ela cometerá um tipo de violência, o assassinato. Pois bem, tanto estuprar quanto assassinar são atitudes que condenamos moralmente e punimos legalmente por atestarem contra os princípio da dignidade humana e da inviolabilidade da vida humana. Contudo, concordamos que o crime do estuprador teria sido maior e ainda mais reprovável se, além do estupro, ele também tivesse matado a mulher. Se, deste modo, admitimos que aqueles princípios não podem ser preteridos e, com base nisso, afirmamos que o erro e o dano teriam sido piores em caso de assassinato da mulher (porque não apenas sua liberdade mas também sua vida teria sido tirada), então, em nome de que critério realmente legítimo validaríamos agora um suposto direito de relativizar os princípios da dignidade e inviolabilidade da vida humana, autorizando o aborto do filho?

Tal como não foi escolha da mulher ser estuprada, também não foi escolha do feto ser concebido. Moralmente falando, é absolutamente injusto transferir a punição da ação perversa do estuprador para um terceiro elemento que é inteiramente inocente – aliás, se nem o estuprador é condenado à morte em nome da inviolabilidade da vida humana, com que direito condenaríamos à morte o feto inocente? Juridicamente falando, é inconstitucional exigir que o Estado ratifique essa punição injusta, pois isso contradiria o que a constituição reza acerca dos direitos fundamentais. E também de um ponto de vista psicológico, nem o fato de abortar faria a mulher se sentir menos violentada, nem uma lei que autorizasse o aborto faria com que ela se sentisse menos injusta em abortar (ou, até mesmo, menos assassina), porque, afinal de contas, ela sabe que se trata de um ser humano que pagaria com a vida sendo absolutamente isento de qualquer culpa, não menos inocente que ela, não menos indefeso, e com a mesma dignidade que ela mesma reconhece ter sido violada em si. É certamente compreensível que sua justificada aversão ao estuprador não a permitisse amar o filho que, em outra situação, ela desejaria e amaria; mas o fato mesmo de ela sentir sua vida e liberdade agredidas já é, por si mesmo, uma prova de que a vida e a liberdade são valores que ninguém tem o direito de violar. E isso significa que ela também não tem esse direito sobre o nascituro que traz consigo.

Entendo profundamente o sofrimento da mulher, e por isso chamo a atenção para o fato de que a verdadeira perversidade é haver atos de estupro, não gravidez – que é apenas uma consequência, embora certamente indesejável, de alguns desses casos. Construir uma sociedade em que o respeito e a segurança de fato aconteçam, isso sim é uma forma de eliminar a violência, da qual o estupro é apenas uma modalidade. Abortar, no entanto, ao invés de solução, é apenas mais uma forma de violência contra a dignidade e à vida alheia. Mais que isso, legalizar o aborto do humano que foi concebido por estupro seria uma incoerente perda de foco: o direito à vida não é um direito provisório, condicionado às circunstâncias, porque o homem não é mais nem menos humano dependendo de circunstância alguma.

Enfim, também não é necessariamente verdadeira a afirmação de que mães estupradas não conseguirão criar seus filhos: lembre-se, por exemplo, o caso de uma mulher que estava presa e, tendo sido estuprada por outro detento, manteve a gestação e deu à luz uma filha na cadeia, filha essa que hoje é a deputada federal Fátima Pelaes. Contudo, mesmo que fosse realmente impossível cuidar e amar os filhos de geração provocada por estupro, há ainda outra alternativa que é a de, após nascidos, serem entregues para adoção. Gastos com adoção motivada por estupro jamais seriam a maior fonte de despesas do governo – e todo o gasto desse tipo seria louvável, ao contrário de tantos outros que sabemos existirem e serem desnecessários e reprováveis.

3) Terceiro argumento: Dizem‐nos que, quando a mãe corre perigo de vida por causa

da gravidez, e tem de escolher entre sua vida e a do filho, ela deve poder escolher retirar o filho e conservar sua vida.

Considerando‐se o já citado princípio da dignidade humana, segundo o qual tudo o que não é passível de um preço (seja ele qual for) não pode ser substituído por nenhuma equivalência e, por isso, constitui uma dignidade em si mesma, legitimar o aborto em casos de risco de morte à mãe seria uma forma em si mesma contraditória de valorar a vida humana: para salvar uma vida, estaríamos autorizando que se tirasse outra. De um ponto de vista jurídico, os mesmos direitos que ela detém enquanto pessoa humana, são assegurados ao nascituro. Não há, portanto, como legitimar à mulher o direito de abortar sem implicar restrição à dignidade do filho. E, existencialmente falando, ambos são igualmente únicos e insubstituíveis.

Sem menosprezo algum do valor da mulher, tudo o que a mãe tem a mais que o filho neste contexto é uma história de vida extrauterina longa e o afeto muito maior de seus familiares. Concordo que isso de modo algum seja pouco, e que talvez seja a maior fonte de todo o sofrimento dessa família. Mas prestem atenção ao nível injustificado ao qual levaremos a liberdade da mãe e ao nada a que reduziremos a dignidade do filho que está sendo gerado se dissermos que ela tem o direito de retirar o filho: seja qual for o risco, o filho não é uma amígdala que a mulher tira quando inflamada, ou um câncer que precisa ser eliminado porque deixa‐lo ali certamente a mataria. A mulher tem o direito de viver, mas não de determinar onde termina o direito à vida que é assegurado ao filho. Parece-me que, de certo modo, acostumamo‐nos a tirar o sofrimento de nosso horizonte de significado e, com isso, cegamo‐nos para ver que a vida se compõe de momentos às vezes tão dramáticos (e trágicos) como esse; e que diante de muitos deles não nos resta senão lutar para nos mantermos vivos, sem que, para isso, precisemos ser causa de morte a outros.

4) Quarto argumento: dizem‐nos que em caso de fetos anencéfalos (com má formação cerebral), a mulher deve ter o direito de abortar porque, sendo anencéfalo, o feto já tem morte cerebral ou terá morte cerebral logo depois de nascer. Como os termos de uma ação que propunha a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos feita pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, em 2004, “manter o de crime nesses casos seria uma ofensa à dignidade da mãe, que seria obrigada levar adiante a gravidez de um feto que não sobreviverá depois do parto”. Outro exemplo é dado pelo presidente da OAB do Rio de Janeiro, Wadih Damous, que afirmou ainda ontem que obrigar a mulher a manter a gestação de anencéfalo é submetê‐la a uma tortura psicológica, violando sua saúde física e mental e afrontando seus direitos fundamentais, protegidos pela Constituição Federal.

Antes de tudo, um feto anencéfalo é um feto com má formação cerebral, e não “sem cérebro”, como muitos tem afirmado sem qualquer base cientifica. Além disso, há diversos tipos de anencefalia, cada uma potencialmente diferente da outra, como explica em diversos vídeos Lenise Garcia, Doutora em Microbiologia, inclusive indicando casos de crianças anencéfalas que viveram até mais de um ano (indico veementemente o seguinte vídeo, em que a Dr. Lenise aborda o tema da anencefalia no Superior Tribunal Federal, mostrando as mentiras que têm sido ditas a favor do aborto (http://www.youtube.com/watch?v=wHNMlYyBa7E).

Ser um feto anencéfalo não significa ser um feto morto. Esse é precisamente o ponto: se dizemos que fetos anencéfalos devem ser retirados do ventre porque cedo ou tarde terão morte cerebral, essa é, em si mesma, uma forma de admitir que eles estão vivos. E diante disso, cabe nos perguntarmos que direito temos de tirar a vida de um ser humano com base no argumento de que ele será fisicamente imperfeito e viverá pouco?

Como homem da lei, o referido presidente da OAB‐RJ, Sr Wadih Damous, sabe que a constituição protege a saúde física e mental da mulher, mas também sabe que esses direitos só são garantidos porque são instâncias do princípio máximo do Estado Democrático de Direito, que é o princípio da dignidade humana. E sabe também que a dignidade humana diz respeito a todo ser humano, não apenas às mulheres ou a humanos perfeitos. Diante disso, parece haver certa perversidade na base de seu raciocínio: para ele poder afirmar que a mulher tem o direito de abortar seu filho imperfeito, é preciso que ele entenda que o feto anencéfalo não é um caso que a dignidade humana cobre – isto é, que ser um humano imperfeito não é ter dignidade humana. Afinal, somente concebendo que humanos imperfeitos não sejam tipos humanos aos quais a dignidade humana se aplica é que faz sentido tomar a existência dos anencéfalos como irrisória e preterível por meio do aborto, supostamente amparado pelos direitos fundamentais que, na verdade, depõe contra a violação da vida.

Assim, defender que a vida do feto pode ser tirada porque ele vai causar sofrimento psicológico à mulher por ser um humano imperfeito… porque vai viver por pouco tempo… porque sua vida será vegetativa… porque terá baixa qualidade… é ignorar completamente o significado da dignidade e da existência humanas, condicionando seu valor a um ideal de ser humano perfeito, beirando à forma nazista de classificar os seres humanos. Por isso me impressiona que Damous se omita acerca do fato de que o verdadeiro foco em torno do aborto de anencéfalos não está no sofrimento que a mãe sente por ter um filho imperfeito, mas no fato de um filho imperfeito ter a mesma dignidade de um filho perfeito. O valor e a dignidade de uma vida e de uma pessoa se medem por ela mesma, não importa se essa vida é de um dia ou de um século, e se essa pessoa é perfeita ou não. Se a vida humana é inalienável, como assegura a constituição, independentemente de quanto tempo ela dure e de quanta qualidade ela disponha, ela não pode ser violada! E o princípio da dignidade humana, definitivamente, não tem nada a ver com seres humanos fisiológica ou mentalmente perfeitos.

5) Quinto argumento: Dizem que a mulher tem direito de escolher que faz com seu próprio corpo, e que deveria poder abortar porque não pode ser forçada a manter um feto indesejado sem que isso seja um tipo de violação do direito que ela tem sobre seu próprio corpo.

Com efeito, na vida temos direitos pessoais, mas também obrigações. Temos, por exemplo, a obrigação de sermos responsáveis para com nossos atos, inclusive os sexuais, e arca com suas consequências. E quanto aos direitos pessoais, eles jamais podem limitar os direitos de outras pessoas. Sempre que um indivíduo toma decisões ou tem condutas que não respeitam a dignidade dos outros, ele está desamparado pelo direito. Sendo assim, cabe perguntar: evocando que princípio maior que os princípios da dignidade humana e da inviolabilidade da vida humana a mulher em questão poderia dizer “eu tenho direito sobre meu corpo para abortar”? Ela diz ter direito sobre seu corpo e, no entanto, omite‐se sobre o dever de se responsabilizar pelo cuidado dele e pelos usos que dele faz. Pedir que se legalize o aborto alegando que a mulher deve ter pleno direito sobre seu corpo é reduzir o humano em gestação a um apêndice ou a um tumor, que pode ser retirado quando causa incômodo.

Ora, se eu fumasse durante boa parte de minha vida e isso me provocasse um câncer pulmonar, não teria o direito de pedir do estado que criminalizasse as fábricas de cigarro, pois a escolha de fumar teria sido minha. Da mesma forma, se uma mulher engravida, ela não tem o direito de pedir do Estado que descriminalize o aborto com base na tese de que ela tem direito sobre seu próprio corpo, pois, por mais laico que seja, (1) o Estado não deve se responsabilizar pelo uso irresponsável que os indivíduos fazem de seus corpos (e é irresponsável porque ela pretende não arcar com as consequências que esse uso sabidamente possibilita) e (2) o Estado não tem direito algum de punir o feto autorizando sua morte pela mãe por um ato irresponsável dela. Não acuso quem o defenda, porque acredito que talvez o faça por não ter consciência do que isso na verdade significa, mas descriminalizar o aborto sob esse pretexto é, na verdade, tornar o egocentrismo mais digno que o compromisso com a vida e com a dignidade humana.

6) Sexto argumento: Dizem‐nos que, em uma situação na qual uma família é muito pobre,ou desestruturada afetiva e psicologicamente, se a criança nascer em um lar qual esse, teria uma vida demasiado difícil por não se poder garantir que ela tivesse sequer as condições básicas de sobrevivência atendidas, muito menos de desenvolver‐se física e psiquicamente como um ser humano saudável e bom, e que isso seria uma razão válida para abortar.

Talvez seja este o argumento mais discricionário dentre todos, porque, por trás de uma dissimulada preocupação com o bem da humanidade, a defesa do aborto acaba funcionando como uma forma de “controle de qualidade humana”, como um ideal de população perfeita. É difícil acreditar que isso possa ser entendido por muitos como preocupação com a “dignidade humana”, quando o simples emprego deste argumento já é, por si só, uma forma de ser desumano. Isso me lembra Hitler, quando defendia que “devemos eliminar aqueles que são inferiores a nós, arianos”. É isso o que dizemos quando defendemos o aborto com base na tese de que “os que vão nascer em condições materiais inferiores serão humanos inferiores”. Ilogicamente, o argumento é, “Como serão humanos inferiores; eles não têm direito à vida”.

Poderia aqui recorrer a vários exemplos, mas, para citar um já conhecido de muitos, analisemos o que Sergio Cabral, governador do Rio de Janeiro, disse em entrevista ao Portal G1, em 2007, sobre a relação entre a quantidade de pessoas nascidas em lugares pobres e o aumento do índice de violência: “Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Na verdade, uma fábrica de marginais consiste exatamente em fazer isso o que ele fez: separar a humanidade em classes de pessoas dignas e indignas, em separar humanos de alto padrão e humanos de baixo padrão, venham de onde vierem. E o pior é que na mesma entrevista ele teve a coragem de falar que “a ordem pública está dentro dos valores democráticos”. Será que ele não sabe que o principal principio democrático é o da dignidade humana e da inalienabilidade da vida humana? E que a ordem pública depende substancialmente de garantir que todos os cidadãos tenham acesso àquilo que lhes é direito? Ora, se a causa do aumento da violência realmente for o fato de que os filhos nascidos em favelas têm poucas condições materiais para se desenvolverem, é preciso criar projetos de inclusão social que garantam a eles boa educação, moradia, saúde, trabalho (dentre outros), e não defender que devem ser abortados… Dizer que “os filhos nascidos na Rocinha serão bandidos” é apenas uma forma de encontrar bodes expiatórios para o problema da violência, cujas causas reais e mais fundamentais é obrigação do governo combater. Da mesma forma, dizer que, porque muito serão bandidos, “deveríamos autorizar que fossem mortos antes de nascer” constitui uma violência contra a dignidade humana, uma violência bem mais monstruosa que a dos próprios bandidos.

Hitler também se julgou no direito de redefinir o conceito de ser humano e de dignidade humana. E, tendo feito isso, homens, mulheres e crianças de etnia diferente da ariana foram transportados de suas casas para clareiras no meio de florestas, nas quais foram cavadas fileiras de fossos, nos quais essas pessoas foram atiradas, nuas, e enterradas vivas. O mais incrível é que Hitler não fez nada fora da lei: ele redefiniu o conceito de “homem” entendendo que “ariano é o humano perfeito, de alto padrão”, fez uma constituição que legitimasse isso e, assim, tirou pouco a pouco todos os direitos de outras etnias e descriminalizou a matança das mesmas. O mesmo ocorre nesse discurso de Sérgio Cabral: “legalizando o aborto como controle de população, vamos acabar com boa parte dos pobres que vão nascer nas favelas, e isso diminuirá a violência”. Não, governador! O que elimina a violência é o fim da desigualdade, não o aborto dos filhos que se tornarão violentos. Sempre surgirão pessoas violentas em todas as classes, se as condições sociais continuarem sendo desiguais.

Apresento os quatro últimos pontos que mostram a falta de fundamento dessa tese.

Primeiramente, não existe algo como “inferioridade humana” como causa de males sociais. Mesmo que um ser humano não se desenvolva física, psicológica ou economicamente como outros, isso

não significa que seja menos humano. Se fosse assim, seria correto matarmos a todos os que têm alguma debilidade mental evolutiva e irreversível porque evidentemente nunca poderão se desenvolver como os seres humanos que são sadios. Ou, também, seria correto matarmos todos os miseráveis do país, não apenas os nascituros, porque assim resolveríamos definitivamente o problema da pobreza nacional. Se não o fazemos, é porque o sentido do conceito de “ser humano” e a dignidade da pessoa humana não tem nada a ver com perfeição física ou mental, nem mesmo com sua conduta boa ou má, ou com os consequências sociais que podem trazer, condicionados ou não pelo meio em que nasceram e vivem.

Em segundo lugar, á pessoas de boa conduta e de má conduta em todas as classes, e em muitos casos isso tem a ver com conflitos psíquicos inconscientes, não apenas com fatores ambientais. Portanto, o fato de um ambiente deficitário poder atuar condicionando de alguma forma o mau desenvolvimento de uma pessoa e de seu caráter não permite concluir que esta pessoa necessariamente não se desenvolverá bem e que terá má conduta. E, assim, é errado negar o direito de nascer a alguém com base em um cálculo absolutamente imprevisível daquilo que pode vir a ser como pessoa. Ademais, quanta gente vi crescer em situações paupérrimas, em lares completamente desestruturados, de famílias sem condição alguma de prover educação, afeto e bem-estar e, apesar disso, tornarem-se pessoas de bem, de bom caráter! Talvez estes humanos em vida intrauterina depois venham a ser pessoas melhores que nós em coragem e conduta, e conquistem transformações significativas em nossa sociedade, exatamente por terem passado por situações que, de tão sofridas, ensinaram-lhes a serem fortes e a terem sincero respeito e preocupação com o bem dos outros.

Em terceiro lugar, também não é necessariamente verdadeiro que todos os que nascem em berço de outro se tornem pessoas de bem. Se fosse verdade, não haveria tantos bandidos engravatados nesse país, nascidos e criados em ambientes economicamente abastados. Além disso, os episódios mais violentos que já presenciamos nunca foram causados por pessoas pobres e por seus interesses, mas por pessoas e governos poderosos, de cujos interesses a maioria pobre raramente tinha plena consciência. E mesmo as violentas revoluções encabeçadas pelo povo nunca foram senão uma reclamação de igualdade: ou seja, a causa mesma era a desigualdade imposta pelos abastados.

Em quarto lugar, se admitirmos a tese de que a desigualdade de condições socioeconômicas é a causa de muitos males, como, por exemplo, a violência, isso não se resolveria com aborto, mas com educação e políticas públicas que assegurassem condições igualitárias de vida. Além disso, mesmo se fosse verdade que as pessoas nascidas em situação muito pobre se tornassem pessoas de má conduta e nunca mudassem, sendo realmente marginais, sendo a culpa disso das condições socioeconômicas escassas de suas famílias, isso em nada diminuiria sua dignidade humana e seu direito à vida, embora certamente deveria aumentar nosso sentimento de culpa por fazermos pouco ou nada para modificar as condições em que vivem nossos concidadãos.

A título de conclusão, ressalto que não podemos permitir que, assim como Hitler redefiniu o conceito de humano e por meio disso legalizou a morte de milhões de humanos, aqueles que não entenderam o valor da vida e da dignidade humana repitam os erros da história e redefinam o conceito de humanidade para legalizar outro sacrifício em massa de seres humanos nascituros, em vista de interesses próprios. Uma coisa é ver que na natureza é comum que animais da mesma espécie matem e mesmo devorem seus filhotes, mas nós não somos cães, coelhos ou ursos… Descriminalizar o aborto é uma proposta em si mesma incoerente, porque não se pode afirmar a vida como um valor absoluto e inalienável e pedir que em certas circunstancias ela não o seja, e tampouco violar a vida humana sem relativizar sua dignidade. Ora, nós refletimos acerca do valor de nossos atos, e somos pessoal e socialmente responsáveis por reconhecer e proteger a dignidade do outro, tal como a reconhecemos e protegemos em nós mesmos.

Sou contra a descriminalização do aborto em quaisquer suas formas, pois nenhuma delas é legitimamente capaz de relativizar os princípios da dignidade humana e da inviolabilidade da vida humana. E se um estado verdadeiramente tem por finalidade o bem do povo, jamais pode se prestar a lavar as mãos a respeito da dignidade humana.

Curitiba, 11 de abril de 2012.

Eduardo de Oliveira Torquete

Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR

Mestrando em Filosofia pela mesma instituição.

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